quarta-feira, 27 de julho de 2016

COMBATENDO AS FORMIGAS DOMÉSTICAS

COMBATENDO AS FORMIGAS DOMÉSTICAS

Um fato despertou a minha atenção recentemente e as fotos neste artigo demonstram o meu espanto na força de adaptação dessa criaturinha minúscula que é a formiga fantasma (Tapinoma melanocephalum). Milhões delas instalaram-se confortavelmente dentro de uma fita de vhs que estava no meu escritório e, durante uma faxina, foi recuperada e rapidamente levada ao biotério para alimentação e cuidados.


Figura 1 - fita vhs infestada com Tapinoma melanocephalum
     

  

Figura 2 –detalhes das crias


Figura 3 - a colônia é bem grande e está bem acomodada

As colônias de Tapinoma sempre foram fascinantes para mim, pois as tenho observado há longo tempo. Estiverem muito presentes durante as pesquisas que fiz para obtenção do título de Mestrado e são realmente admiráveis.
Elas fazem parte de um grupo seleto de formigas conhecidas como “tramp ants” em inglês que quer dizer formigas andarilhas, aquelas que se mudam muito. E a Tapinoma é um exemplo muito claro dessa estranha característica dessas formigas.
Quando fui convidada a escrever um artigo a respeito das formigas “tramp ants” fiquei um tempo imaginando o que poderia escrever para contribuir aos leitores da Vetores e Pragas, por onde passaram grandes mestres da entomologia e especialistas no conhecimento a respeito de formigas. Achei que seria interessante falar de uma forma menos acadêmica e mais prática a respeito dessas formigas e, em especial da Tapinoma que tantas alegrias e perturbações me trouxe na minha vida profissional.
É relativamente fácil escrever sobre a biologia, etologia dessas formigas. Basta abrir um dos milhares livros que já foram escritos sobre o assunto e todas as informações estão ali. Isso todos nós podemos fazer, mas a minha proposta é falar um pouco da minha curta vivência com essas formigas e passar as minhas impressões. Vou apreciar muito saber dos meus colegas que porventura tiverem a paciência de ler esse artigo, de suas opiniões e experiências com esses magníficos insetos.
Meu primeiro encontro com essa formiga foi na sala de trabalho quando observei que umas formiguinhas minúsculas entravam e saiam de um buraco feito por um prego na minha parede. Achei estranho, pois um carreiro de formigas era mais comum em formigas cortadeiras, mas esse era um carreiro muito ativo. Por alguns dias observei e ofereci alguns alimentos para essas formigas que cada dia aumentavam a sua coleta diária.
Capturei algumas e observei na lupa. Eram estranhas aquelas formiguinhas, com pernas e abdômen clarinhos. Fui então pesquisar na internet, que era muito fraquinha e incipiente na ocasião, porém, encontrei num site de imagens a foto da minha formiguinha. Lá estava ela, a Tapinoma melanocephalum. Esse foi meu primeiro encontro com essa formiga. O ano por volta de 1997/98. Ainda não víamos muito dessas formigas por aí. Na época surgiu uma isca para formigas na forma de pasta que eu usei com ótimos resultados.
Pouco tempo depois, durante o curso de Entomologia Urbana na UNESP o meu interesse for essas formiguinhas foi crescendo. O meu despertar para esse conhecimento surgiu graças aos estímulos e informações fornecidas na época, especialmente pela Prof.ª Ana Eugenia Campos, que acompanhou o meu trabalho e, mais tarde, participou da banca de Mestrado onde apresentei a tese sobre as formigas urbanas.
Com certeza, controlar essas formigas não tem nada de simples. Para nós, controladores de pragas, habituados a usar inseticidas em aspersão para quase tudo, é um desafio. Recordo-me de uma das minhas primeiras tarefas como controladora de Tapinoma em um conjunto de casas, utilizei para isso a técnica que considerava adequada para descobrir as formigas, que foi o uso de iscas atrativas. Na UNESP nos ensinaram a fabricar uma isca com vários ingredientes, uma amálgama de carboidratos e proteína. Na minha vida pratica produzir essas iscas requeria alguns equipamentos que eu não possuía então resolvi usar o açúcar, porém acrescido de um pouco de água. Deu bastante certo. As formigas eram atraídas para essa isca em grande quantidade, mesmo sem as proteínas. E foi nesse ponto que eu cometi o meu primeiro erro de controle, talvez por não ter disponível o material necessário. Eu consegui atrair as formigas, porém usava um spray com uma combinação de três princípios ativos, muito eficaz para a maioria dos problemas, mas que fez justamente o contrário aumentou o numero de formigas a tal ponto que eu perdi o controle. Nesse ponto, precisamos fazer uma pausa para entender essa situação de forma mais clara. O mercado brasileiro engatinhava em termos de iscas para formigas na ocasião, e aquele gel que tinha dado tão certo na primeira vez já não fazia o mesmo efeito, talvez alguma mudança na fórmula, não sei dizer. Recorri então ao spray e toda aquela tese que os livros falam que as formigas se espalham quando usamos inseticidas em forma de spray virou pura realidade. Na vida é assim, tombamos muito para aprender e, realmente, entender essas formiguinhas é fundamental.
A Bibliografia disponível, a qual eu costumo recorrer nos momentos de dúvida e dificuldade, mostram muitos ensaios com formigas em áreas agrícolas, Tapinoma, Linepithema e outras e mostram resultados químicos, porém quase nada se fala sobre o comportamento desses animais. As informações chegam até nós em artigos feitos no exterior e as brasileiras enfocam as espécies encontradas, uma espécie de censo demográfico das formigas exóticas e nativas que invadem hospitais, na sua maioria. Certa ocasião uma professora da graduação desabafou dizendo por que tanta informação é publicada envolvendo dados estatísticos. Para ela, a estatística passou a ser mais importante que o próprio animal e tenho que concordar com ela. Na biologia, o que mais me interessa é observar o animal, ver do que ele é capaz. Como profissional de controle de pragas essa conduta me ajuda a entender como esse animal “pensa”, onde ela vai se esconder e a partir daí eu vou tentar encontrar soluções práticas para impedir que esse animal nos incomode.
É fato mais do que conhecido que as formigas são insetos vetores de microrganismos patogênicos e não patogênicos. Desde Beatson (1976) que observou isso pela primeira vez até os vários pesquisadores que se seguiram nessa pesquisa em todo o mundo, vários microrganismo de importância médica foram encontrados abrigados nas formigas, nas suas pernas , no seu corpo ou exoesqueleto como um todo. Minha orientadora no Mestrado, Dra. Maria Helena Matté, me ajudou numa experiência em que contaminamos com uma bactéria conhecida um grupo de formigas e as fotografamos dentro da própria Faculdade de Saúde Pública. A fotografia foi feita por outro departamento porem a contaminação foi nossa e foi muito prazeroso ver, de fato, bactérias coladinhas no exoesqueleto das formigas do ensaio, foi uma prova irrefutável que esses insetos representam um sério perigo para a Saúde Pública.

Figura 4 - imagem de parte de corpo de formiga Monomorium floricola contaminada com Escherichia coli durante experimento feito por Lucia Schuller sob orientação da Dra. Maria Helena Matté da Faculdade de Saúde Pública da USP


Como foi a adaptação dessas formigas nos ambientes urbanos? Vários materiais são utilizados nas construções e todos eles sofrem desgaste que é provocado pelo clima. A madeira é um deles, movimentando-se o tempo toda a madeira é um elemento preferencial de abrigo dessas formigas. Características da madeira são porosidade, permite a infiltração de água e aderência de alimentos, é muito difícil de higienizar e, por isso mesmo, é vedada em áreas de alimentos. No entanto, apesar dessa restrição legal, durante a minha pesquisa de campo encontrei inúmeras situações de áreas de preparo, distribuição e estoque de alimentos em que a madeira estava presente. Coincidentemente ou não, as formigas estavam nesses mesmos lugares. E assim vai, se observarmos todos os elementos que usamos em nossas construções, eles sofrem a ação do tempo, se desgastam e se rompem. As formigas são insetos muito pequenos, algumas medem menos de um mm, sendo assim fica muito fácil para elas, considerando os materiais disponíveis, escolher um bom local de abrigo dentro de uma estrutura, seja ela qualquer uma.
Pode parecer uma desculpa esfarrapada atribuir aos materiais a presença das formigas, mas não podemos nos esquecer de que na profissão de controladores de pragas temos como obrigação conhecer como vivem as pragas, como elas se estruturam, como se abrigam, o que comem. Sem esse conhecimento deixamos de ser controladores de pragas e passamos a ser aplicadores de saneantes domissanitários, o que, aliás, nada tem a ver com a nossa profissão.
Já aprendemos que os inseticidas têm as suas limitações e isso vale muito para o Brasil onde há algumas formulações como as líquidas, para formigas, por exemplo, que não tem registro por aqui.  Certa ocasião, quando um produto isca sólida era comercializado no Brasil, cujo ingrediente ativo era a hidrametilnona, percebi que algumas formigas pequenas não carregavam a isca. Experimentamos moer um pouco a isca, diminuindo o tamanho das partículas e a aceitação foi geral. São observações como essas que vão sendo perdidas, pois não são publicadas em nenhum lugar nem têm espaço nas revistas científicas e que são de grande utilidade para nós. Certamente que seria muito melhor se tivéssemos um sortimento farto de produtos para controlar formigas “tramp ants”. Algumas formulações do tipo sólido desapareceram do mercado e restaram somente os géis, o que limita sobremaneira nosso trabalho.
Assim posto, posso afirmar que muito se consegue em termos de controle se fizermos também o trabalho de “cura” ambiental, ou seja, a melhoria das condições ambientais, através da diminuição dos espaços para sobrevivência desses animais. Uma imagem interessante que acho importante destacar é a figura 5, onde observamos uma parede de onde foi removido todo o revestimento de azulejos feito há 35 anos. Nota-se que há um espaço grande entre o “bolo” de massa aplicada e o azulejo seguinte, mostrando claramente aonde as formigas e outros insetos crípticos vão se esconder. Em outras palavras, ou aplicamos inseticida em cada buraquinho desses ou vedamos com massa para solucionar de vez o problema.

Figura 5 - flagrante obtido durante a remoção dos azulejos com cerca de 35 anos de idade mostrando como a massa era colocada e os vãos que ela oferecia depois da secagem para abrigo de vários organismos, inclusive de colônias de formigas.


Para o controle das "tramp ants” precisamos interagir com o exterior também, pois muitas formigas que recebem essa denominação estão alojadas no lado de fora, em cascas de árvores, em frestas grandes das estruturas e aí as ações tradicionais de aspersão de inseticida farão o efeito necessário.
Finalmente, há alguns requerimentos necessários para o controle dessas formigas:
1.       Conhecer e identificar todas as espécies predominantes
2.       Conhecer sua biologia, etologia e ecologia.
3.       Conhecer todas as matérias primas disponíveis para o controle no mercado.
4.       Praticar ações preventivas, fechando frestas e orientando o cliente nestas ações.
5.       Educar os clientes conscientizando-os para o problema com formigas e evidenciando as consequências da convivência com esses insetos.
6.       Observar o derredor das edificações já que formigas se deslocam em grandes distâncias para chegar ao alimento ou mesmo para “passear”. Um relato da Dra. Ana Eugenia me impressionou quando ela disse ter marcado formigas que apareciam em seu apartamento e observá-las posteriormente muitos andares acima.
7.       Formigas transitam pela rede elétrica, em busca de abrigo e calor. Procure inspecionar essas áreas para colocar o produto certo. Minha sugestão é o uso de talco ao invés de pós inseticidas.
8.       Oriente o cliente quanto à colocação de plantas nos interiores. Plantas sempre abrigam microrganismos e insetos e uma colônia das chamadas “tramp ants” pode ficar num vasinho de violetas.
9.       Verificar se a área externa das edificações têm muitas fissuras. Formigas como as do gênero Paratrechina gostam de abrigar-se nestas frestas e de lá se movimentam em direção aos pontos de interesse.
10.   Em hospitais, as formigas Paratrechina costumam ser atraídas para caixas que contém restos de curativos, o lixinho, vamos dizer assim, da enfermaria. Fique de olho nessas caixas e observe a origem das formigas.
Como muitos de meus colegas já devem ter vivenciado, controlar formigas nos ambientes urbanos não é tarefa nada fácil. Mais do que nunca, depender só dos produtos químicos não vai dar certo. Há que se ter um olho clínico e observar bem o ambiente. Certamente, após ler esse artigo muitos dirão que já vivenciaram situações semelhantes ou terão informações novas a oferecer. Passo aqui somente a minha modesta experiência e que certamente será muito enriquecida com a experiência de todos os colegas que se interessarem pelo assunto.

Lucia Schuller
Bióloga e Mestre em Saúde Pública pela USP
Bibliografia de apoio:

Beatson SH. Pharaoh’s ants as pathogens vectors in  hospitals. Lancet 1972; 1(7747):425-7
Beatson SH. Pharaoh’s ants enter giving-sets. Lancet 1973;1(7803):606.
Bueno OC, Fowler HG. Exotic Ants and Native Ant Fauna of Brazilian Hospitals. In: Williams D, editor. Exotic Ants: Biology, Impact and Control of Introduced Species. Boulder:Wstview Press; 1994. P. 191-198.
Hughes DE; Kassim OO; Gregory J; Stupart M; Austin L; Duffield R. Spectrum of bacterial pathogens transmitted by Pharaoh’s ants. Laboratory Animal Science. 1989; 39(2):167-168
Passera L. Characteristics of Tramp Species. In: Williams D, editor. Exotic Ants: Biology, Impact and Control of Introduced Species. Boulder, Westview Press; 1994. P.191-198.
Schuller L. Controle de Pragas nos Serviços de Alimentação. In Silva Jr EA. Manual de Controle Higiênico-Sanitário em Alimentos. 3ª ed. São Paulo: Livraria Varela; 1999. P.93-102.
Schuller L. Levantamento e Identificação das espécies de formigas andarilhas em indústria de medicamentos e seu controle. São Paulo (SP); 2000 (Monografia de conclusão de curso de Pós Graduação em Entomologia Urbana, UNESP).

Schuller L. Microrganismos patogênicos veiculados por formigas “andarilhas” em Unidades de Alimentação. São Paulo (SP); 2004 (Dissertação de Mestrado, Faculdade de Saúde Pública, USP)