COMBATENDO AS FORMIGAS DOMÉSTICAS
Um fato
despertou a minha atenção recentemente e as fotos neste artigo demonstram o meu
espanto na força de adaptação dessa criaturinha minúscula que é a formiga
fantasma (Tapinoma melanocephalum). Milhões delas instalaram-se
confortavelmente dentro de uma fita de vhs que estava no meu escritório e,
durante uma faxina, foi recuperada e rapidamente levada ao biotério para
alimentação e cuidados.
Figura 1
- fita vhs infestada com Tapinoma melanocephalum
Figura 2
–detalhes das crias
Figura 3
- a colônia é bem grande e está bem acomodada
As colônias de Tapinoma sempre foram fascinantes para
mim, pois as tenho observado há longo tempo. Estiverem muito presentes durante
as pesquisas que fiz para obtenção do título de Mestrado e são realmente
admiráveis.
Elas fazem parte
de um grupo seleto de formigas conhecidas como “tramp ants” em inglês que quer
dizer formigas andarilhas, aquelas que se mudam muito. E a Tapinoma é um exemplo muito claro dessa estranha característica
dessas formigas.
Quando fui
convidada a escrever um artigo a respeito das formigas “tramp ants” fiquei um
tempo imaginando o que poderia escrever para contribuir aos leitores da Vetores
e Pragas, por onde passaram grandes mestres da entomologia e especialistas no
conhecimento a respeito de formigas. Achei que seria interessante falar de uma
forma menos acadêmica e mais prática a respeito dessas formigas e, em especial
da Tapinoma que tantas alegrias e
perturbações me trouxe na minha vida profissional.
É relativamente
fácil escrever sobre a biologia, etologia dessas formigas. Basta abrir um dos
milhares livros que já foram escritos sobre o assunto e todas as informações
estão ali. Isso todos nós podemos fazer, mas a minha proposta é falar um pouco
da minha curta vivência com essas formigas e passar as minhas impressões. Vou
apreciar muito saber dos meus colegas que porventura tiverem a paciência de ler
esse artigo, de suas opiniões e experiências com esses magníficos insetos.
Meu primeiro
encontro com essa formiga foi na sala de trabalho quando observei que umas
formiguinhas minúsculas entravam e saiam de um buraco feito por um prego na
minha parede. Achei estranho, pois um carreiro de formigas era mais comum em
formigas cortadeiras, mas esse era um carreiro muito ativo. Por alguns dias
observei e ofereci alguns alimentos para essas formigas que cada dia aumentavam
a sua coleta diária.
Capturei algumas
e observei na lupa. Eram estranhas aquelas formiguinhas, com pernas e abdômen
clarinhos. Fui então pesquisar na internet, que era muito fraquinha e
incipiente na ocasião, porém, encontrei num site de imagens a foto da minha
formiguinha. Lá estava ela, a Tapinoma melanocephalum. Esse foi
meu primeiro encontro com essa formiga. O ano por volta de 1997/98. Ainda não
víamos muito dessas formigas por aí. Na época surgiu uma isca para formigas na
forma de pasta que eu usei com ótimos resultados.
Pouco tempo
depois, durante o curso de Entomologia Urbana na UNESP o meu interesse for
essas formiguinhas foi crescendo. O meu despertar para esse conhecimento surgiu
graças aos estímulos e informações fornecidas na época, especialmente pela
Prof.ª Ana Eugenia Campos, que acompanhou o meu trabalho e, mais tarde,
participou da banca de Mestrado onde apresentei a tese sobre as formigas
urbanas.
Com certeza,
controlar essas formigas não tem nada de simples. Para nós, controladores de
pragas, habituados a usar inseticidas em aspersão para quase tudo, é um
desafio. Recordo-me de uma das minhas primeiras tarefas como controladora de Tapinoma em um conjunto de casas,
utilizei para isso a técnica que considerava adequada para descobrir as formigas,
que foi o uso de iscas atrativas. Na UNESP nos ensinaram a fabricar uma isca
com vários ingredientes, uma amálgama de carboidratos e proteína. Na minha vida
pratica produzir essas iscas requeria alguns equipamentos que eu não possuía
então resolvi usar o açúcar, porém acrescido de um pouco de água. Deu bastante
certo. As formigas eram atraídas para essa isca em grande quantidade, mesmo sem
as proteínas. E foi nesse ponto que eu cometi o meu primeiro erro de controle,
talvez por não ter disponível o material necessário. Eu consegui atrair as formigas,
porém usava um spray com uma combinação de três princípios ativos, muito eficaz
para a maioria dos problemas, mas que fez justamente o contrário aumentou o
numero de formigas a tal ponto que eu perdi o controle. Nesse ponto, precisamos
fazer uma pausa para entender essa situação de forma mais clara. O mercado
brasileiro engatinhava em termos de iscas para formigas na ocasião, e aquele
gel que tinha dado tão certo na primeira vez já não fazia o mesmo efeito, talvez
alguma mudança na fórmula, não sei dizer. Recorri então ao spray e toda aquela
tese que os livros falam que as formigas se espalham quando usamos inseticidas
em forma de spray virou pura realidade. Na vida é assim, tombamos muito para
aprender e, realmente, entender essas formiguinhas é fundamental.
A Bibliografia
disponível, a qual eu costumo recorrer nos momentos de dúvida e dificuldade,
mostram muitos ensaios com formigas em áreas agrícolas, Tapinoma, Linepithema
e outras e mostram resultados químicos, porém quase nada se fala sobre o
comportamento desses animais. As informações chegam até nós em artigos feitos
no exterior e as brasileiras enfocam as espécies encontradas, uma espécie de
censo demográfico das formigas exóticas e nativas que invadem hospitais, na sua
maioria. Certa ocasião uma professora da graduação desabafou dizendo por que
tanta informação é publicada envolvendo dados estatísticos. Para ela, a
estatística passou a ser mais importante que o próprio animal e tenho que
concordar com ela. Na biologia, o que mais me interessa é observar o animal,
ver do que ele é capaz. Como profissional de controle de pragas essa conduta me
ajuda a entender como esse animal “pensa”, onde ela vai se esconder e a partir
daí eu vou tentar encontrar soluções práticas para impedir que esse animal nos
incomode.
É fato mais do
que conhecido que as formigas são insetos vetores de microrganismos patogênicos
e não patogênicos. Desde Beatson (1976) que observou isso pela primeira vez até
os vários pesquisadores que se seguiram nessa pesquisa em todo o mundo, vários microrganismo
de importância médica foram encontrados abrigados nas formigas, nas suas pernas
, no seu corpo ou exoesqueleto como um todo. Minha orientadora no Mestrado, Dra.
Maria Helena Matté, me ajudou numa experiência em que contaminamos com uma
bactéria conhecida um grupo de formigas e as fotografamos dentro da própria
Faculdade de Saúde Pública. A fotografia foi feita por outro departamento porem
a contaminação foi nossa e foi muito prazeroso ver, de fato, bactérias
coladinhas no exoesqueleto das formigas do ensaio, foi uma prova irrefutável
que esses insetos representam um sério perigo para a Saúde Pública.
Figura 4
- imagem de parte de corpo de formiga Monomorium floricola contaminada com
Escherichia coli durante experimento feito por Lucia Schuller sob orientação da
Dra. Maria Helena Matté da Faculdade de Saúde Pública da USP
Como foi a
adaptação dessas formigas nos ambientes urbanos? Vários materiais são
utilizados nas construções e todos eles sofrem desgaste que é provocado pelo
clima. A madeira é um deles, movimentando-se o tempo toda a madeira é um
elemento preferencial de abrigo dessas formigas. Características da madeira são
porosidade, permite a infiltração de água e aderência de alimentos, é muito
difícil de higienizar e, por isso mesmo, é vedada em áreas de alimentos. No
entanto, apesar dessa restrição legal, durante a minha pesquisa de campo
encontrei inúmeras situações de áreas de preparo, distribuição e estoque de
alimentos em que a madeira estava presente. Coincidentemente ou não, as
formigas estavam nesses mesmos lugares. E assim vai, se observarmos todos os
elementos que usamos em nossas construções, eles sofrem a ação do tempo, se
desgastam e se rompem. As formigas são insetos muito pequenos, algumas medem
menos de um mm, sendo assim fica muito fácil para elas, considerando os
materiais disponíveis, escolher um bom local de abrigo dentro de uma estrutura,
seja ela qualquer uma.
Pode parecer uma
desculpa esfarrapada atribuir aos materiais a presença das formigas, mas não
podemos nos esquecer de que na profissão de controladores de pragas temos como
obrigação conhecer como vivem as pragas, como elas se estruturam, como se
abrigam, o que comem. Sem esse conhecimento deixamos de ser controladores de
pragas e passamos a ser aplicadores de saneantes domissanitários, o que, aliás,
nada tem a ver com a nossa profissão.
Já aprendemos
que os inseticidas têm as suas limitações e isso vale muito para o Brasil onde
há algumas formulações como as líquidas, para formigas, por exemplo, que não
tem registro por aqui. Certa ocasião,
quando um produto isca sólida era comercializado no Brasil, cujo ingrediente ativo
era a hidrametilnona, percebi que algumas formigas pequenas não carregavam a
isca. Experimentamos moer um pouco a isca, diminuindo o tamanho das partículas
e a aceitação foi geral. São observações como essas que vão sendo perdidas,
pois não são publicadas em nenhum lugar nem têm espaço nas revistas científicas
e que são de grande utilidade para nós. Certamente que seria muito melhor se
tivéssemos um sortimento farto de produtos para controlar formigas “tramp
ants”. Algumas formulações do tipo sólido desapareceram do mercado e restaram
somente os géis, o que limita sobremaneira nosso trabalho.
Assim posto, posso
afirmar que muito se consegue em termos de controle se fizermos também o
trabalho de “cura” ambiental, ou seja, a melhoria das condições ambientais,
através da diminuição dos espaços para sobrevivência desses animais. Uma imagem
interessante que acho importante destacar é a figura 5, onde observamos uma
parede de onde foi removido todo o revestimento de azulejos feito há 35 anos.
Nota-se que há um espaço grande entre o “bolo” de massa aplicada e o azulejo
seguinte, mostrando claramente aonde as formigas e outros insetos crípticos vão
se esconder. Em outras palavras, ou aplicamos inseticida em cada buraquinho
desses ou vedamos com massa para solucionar de vez o problema.
Figura 5
- flagrante obtido durante a remoção dos azulejos com cerca de 35 anos de idade
mostrando como a massa era colocada e os vãos que ela oferecia depois da
secagem para abrigo de vários organismos, inclusive de colônias de formigas.
Para o controle
das "tramp ants” precisamos interagir com o exterior também, pois muitas
formigas que recebem essa denominação estão alojadas no lado de fora, em cascas
de árvores, em frestas grandes das estruturas e aí as ações tradicionais de
aspersão de inseticida farão o efeito necessário.
Finalmente, há
alguns requerimentos necessários para o controle dessas formigas:
1.
Conhecer e identificar todas as espécies
predominantes
2.
Conhecer sua biologia, etologia e ecologia.
3.
Conhecer todas as matérias primas disponíveis
para o controle no mercado.
4.
Praticar ações preventivas, fechando frestas e
orientando o cliente nestas ações.
5.
Educar os clientes conscientizando-os para o
problema com formigas e evidenciando as consequências da convivência com esses
insetos.
6.
Observar o derredor das edificações já que
formigas se deslocam em grandes distâncias para chegar ao alimento ou mesmo
para “passear”. Um relato da Dra. Ana Eugenia me impressionou quando ela disse
ter marcado formigas que apareciam em seu apartamento e observá-las
posteriormente muitos andares acima.
7.
Formigas transitam pela rede elétrica, em busca
de abrigo e calor. Procure inspecionar essas áreas para colocar o produto
certo. Minha sugestão é o uso de talco ao invés de pós inseticidas.
8.
Oriente o cliente quanto à colocação de plantas
nos interiores. Plantas sempre abrigam microrganismos e insetos e uma colônia
das chamadas “tramp ants” pode ficar num vasinho de violetas.
9.
Verificar se a área externa das edificações têm
muitas fissuras. Formigas como as do gênero Paratrechina gostam de abrigar-se
nestas frestas e de lá se movimentam em direção aos pontos de interesse.
10.
Em hospitais, as formigas Paratrechina costumam
ser atraídas para caixas que contém restos de curativos, o lixinho, vamos dizer
assim, da enfermaria. Fique de olho nessas caixas e observe a origem das
formigas.
Como muitos de
meus colegas já devem ter vivenciado, controlar formigas nos ambientes urbanos
não é tarefa nada fácil. Mais do que nunca, depender só dos produtos químicos
não vai dar certo. Há que se ter um olho clínico e observar bem o ambiente.
Certamente, após ler esse artigo muitos dirão que já vivenciaram situações
semelhantes ou terão informações novas a oferecer. Passo aqui somente a minha
modesta experiência e que certamente será muito enriquecida com a experiência
de todos os colegas que se interessarem pelo assunto.
Lucia Schuller
Bióloga e Mestre
em Saúde Pública pela USP
Bibliografia de
apoio:
Beatson SH. Pharaoh’s ants as
pathogens vectors in hospitals. Lancet 1972; 1(7747):425-7
Beatson SH. Pharaoh’s ants enter
giving-sets. Lancet
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Bueno OC, Fowler HG. Exotic Ants and
Native Ant Fauna of Brazilian Hospitals. In: Williams D, editor. Exotic Ants: Biology, Impact and Control of
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Hughes DE; Kassim OO; Gregory J;
Stupart M; Austin L; Duffield R. Spectrum of bacterial pathogens transmitted by
Pharaoh’s ants. Laboratory Animal
Science. 1989; 39(2):167-168
Passera L. Characteristics of Tramp
Species. In: Williams D, editor. Exotic
Ants: Biology, Impact and Control of Introduced Species. Boulder, Westview
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Schuller L.
Controle de Pragas nos Serviços de Alimentação. In Silva Jr EA. Manual de Controle Higiênico-Sanitário em
Alimentos. 3ª ed. São Paulo: Livraria Varela; 1999. P.93-102.
Schuller L. Levantamento e Identificação das espécies
de formigas andarilhas em indústria de medicamentos e seu controle. São
Paulo (SP); 2000 (Monografia de conclusão de curso de Pós Graduação em Entomologia
Urbana, UNESP).
Schuller L. Microrganismos patogênicos veiculados por
formigas “andarilhas” em Unidades de Alimentação. São Paulo (SP); 2004
(Dissertação de Mestrado, Faculdade de Saúde Pública, USP)